4 de dezembro de 2023 / 11 min

Arquitetura hostil: Exemplos impactantes em espaços urbanos

Imagine caminhar pelas ruas de uma cidade movimentada, cercado por arranha-céus imponentes e praças públicas convidativas. Enquanto a paisagem urbana pode cativar sua atenção, muitas vezes esconde segredos sombrios. À primeira vista, os edifícios e espaços urbanos podem parecer obras-primas arquitetônicas, mas, à medida que você olha mais de perto, percebe um lado sombrio e […]
Tais Oliveira
Artigos
Padre Julio Lancellotti contra a arquitetura hostil

Imagine caminhar pelas ruas de uma cidade movimentada, cercado por arranha-céus imponentes e praças públicas convidativas. Enquanto a paisagem urbana pode cativar sua atenção, muitas vezes esconde segredos sombrios.

À primeira vista, os edifícios e espaços urbanos podem parecer obras-primas arquitetônicas, mas, à medida que você olha mais de perto, percebe um lado sombrio e inesperado.

Vamos mergulhar no mundo da arquitetura hostil – um termo que descreve a transformação de espaços públicos em locais desumanos e inóspitos. À medida que exploramos exemplos impactantes desse fenômeno, você ficará intrigado com a dualidade da beleza urbana e a preocupante hostilidade que se esconde por trás dela. 

A origem da arquitetura hostil

Mas como essa ideia surgiu e se espalhou pelas ruas das cidades? Para entender isso, precisamos voltar ao século XX, um período marcado por mudanças profundas em nossos centros urbanos. 

À medida que as cidades cresciam e enfrentavam desafios relacionados à segurança, higiene e ordem pública, surgiu uma mentalidade que buscava soluções rápidas e, às vezes, cruéis.

A arquitetura hostil emergiu como uma resposta a essas preocupações. Elementos de design, como bancos inclinados, espinhos metálicos, grades,entre outros, foram incorporados ao espaço público. A princípio, esses elementos podem parecer inofensivos, mas seu propósito subjacente era claro: dificultar ou impedir que pessoas em situação de rua, e outros grupos marginalizados usassem esses locais.

A visão subjacente da arquitetura hostil

Por trás desses projetos de design que transformam nossas cidades em espaços hostis, existe uma mentalidade preocupante. É importante entender a lógica por trás disso, pois somente quando reconhecemos as raízes do problema, podemos começar a trabalhar em direção a soluções mais justas e humanas.

A ideia fundamental por trás da arquitetura hostil é a crença de que certos grupos de pessoas não são bem-vindos em nossos espaços públicos. Esses grupos frequentemente incluem pessoas em situação de rua, jovens, skatistas e outros que podem ser considerados “indesejados” aos olhos daqueles que tomam decisões sobre o design urbano. Essa visão subjacente é profundamente divisória e desumana.

O problema central reside em como definimos o que é aceitável e o que não é no espaço público. Muitas vezes, a aceitabilidade é condicionada pelo trabalho ou pelo consumo. Por exemplo, é considerado aceitável sentar-se em um café ou em um shopping, mas encontrar um lugar confortável para sentar na rua é uma tarefa árdua. Essa mentalidade cria uma divisão clara entre quem é considerado cidadão e quem é excluído.

Essa distinção nos faz esquecer que todos têm direito aos espaços públicos, independentemente de sua situação socioeconômica ou da atividade que estão realizando. A cidade deve ser um lugar inclusivo, onde todos são bem-vindos. No entanto, a arquitetura hostil nega essa visão e reforça a ideia de que apenas alguns merecem desfrutar de nossos espaços urbanos.

Características da arquitetura hostil

Pessoa em condiçao de rua deitado no chão
Por: Osarugue Igbinoba

No coração da discussão sobre a arquitetura hostil, encontramos características profundamente perturbadoras que merecem nossa atenção. São essas características que tornam esse fenômeno tão preocupante e socialmente danoso. Vamos explorar algumas delas em detalhes, na esperança de iluminar a natureza intrínseca da arquitetura hostil.

1. Desumanização:

A arquitetura hostil é, em sua essência, uma forma de desumanização. Quando projetamos espaços urbanos que deliberadamente excluem certos grupos de pessoas, estamos enviando uma mensagem de que suas vidas e necessidades não importam. Isso é profundamente desumano e moralmente indefensável.

Devemos nos lembrar de que, em uma sociedade justa, todos têm o direito a espaços públicos que atendam às suas necessidades básicas.

2. Estigmatização:

Além da desumanização, a arquitetura hostil também promove a estigmatização. Quando elementos como bancos inclinados, espinhos metálicos e iluminação excessiva são introduzidos no ambiente urbano, eles enviam uma mensagem clara de que certos comportamentos são inaceitáveis. Isso pode levar a uma maior estigmatização das pessoas que são alvo dessas medidas, agravando ainda mais sua marginalização.

3. Redução da diversidade:

Outra característica preocupante da arquitetura hostil é sua tendência de reduzir a diversidade do espaço público. Quando criamos ambientes que desencorajam a presença de grupos marginalizados, perdemos a riqueza da diversidade que enriquece nossas cidades. A verdadeira vitalidade urbana vem da convivência de diferentes grupos e culturas. A arquitetura hostil mina essa diversidade e torna nossas cidades mais monótonas.

4. Violação de direitos humanos:

Talvez a característica mais preocupante seja que a arquitetura hostil frequentemente viola os direitos humanos. Ao negar o acesso a espaços públicos, ao impedir que as pessoas descansem ou durmam e ao estigmatizar aqueles que mais precisam de apoio, estamos comprometendo os princípios fundamentais dos direitos humanos. Cada indivíduo deve ser tratado com dignidade e respeito, independentemente de sua situação.

Exemplos impactantes de arquitetura hostil

Cercas elétricas e arames farpados:

Nossa jornada pela arquitetura hostil nos leva a enfrentar uma realidade chocante. Cercas elétricas e arames farpados não são apenas dispositivos de segurança, mas símbolos de segregação e exclusão. Em vez de acolher as pessoas, eles nos lembram de barreiras que separam os privilegiados dos indesejados.

Grades no perímetro de praças e gramados:

Grades no perímetro de praças e gramados
Foto por Fábio Vieira – Metrópolis

As praças e gramados que deveriam ser espaços de encontro e lazer frequentemente são transformados em locais inacessíveis devido a imponentes grades. Essas barreiras físicas restringem o direito das pessoas de desfrutar desses espaços públicos, afetando negativamente a vitalidade das nossas cidades.

Bancos públicos desconfortáveis:

Bancos com grades divisórias para impedir que pessoas possam se deita
(por: Herzi Pinki – Wikimedia Commons)

Bancos públicos que se destinam a ser locais de descanso e reflexão muitas vezes são projetados de forma desconfortável, com superfícies irregulares e estruturas que impedem que as pessoas se sintam à vontade. Isso não é apenas uma crueldade, mas também uma negação do direito básico de descansar e apreciar os espaços urbanos.

Bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado:

Exemplo de arquitetura hostil
(Instagram do Padre Júlio Lancellotti)

Os bancos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia são um exemplo claro de como a arquitetura hostil visa a desconforto. Isso torna difícil para as pessoas se sentarem por muito tempo, afetando especialmente aqueles que precisam de um lugar para descansar.

Bancos curvos e com formas geométricas irregulares:

Alguns bancos públicos são projetados com curvas e formas irregulares, tornando-os desconfortáveis e impróprios para relaxar. Essa é outra estratégia que nega a acessibilidade e a inclusão nas áreas públicas.

Pedras em áreas públicas:

Exemplo de arquitetura hostil pedras em espaços publicos

Espalhar pedras em áreas públicas é uma tática cruel para tornar impossível para as pessoas em situação de rua encontrar um local seguro e macio para descansar ou dormir. Isso não é apenas hostil, mas desumano.

Lanças em muretas e guarda-corpos:

Lanças afiadas em muretas e guarda-corpos são outra forma de impedir que as pessoas se sentem ou se apoiem. Em vez de garantir a segurança, essas estruturas são projetadas para repelir aqueles que procuram um lugar para descansar.

Traves metálicas em portas de comércios:

A instalação de traves metálicas em portas de comércios é uma prática desumana, impedindo que as pessoas descansem nas entradas. Essa é uma estratégia que nega a compaixão e a dignidade humana.

Gotejamento de águas em intervalos estabelecidos sob marquises:

Exemplo de arquitetura hostil condomínio instalou um chuveirinho debaixo da marquise do prédio
(por Domingos Peixoto)

Imagine buscar abrigo sob uma marquise apenas para ser atingido por gotas de água em intervalos regulares. Essa prática cruel é um exemplo de como a arquitetura hostil afeta negativamente a experiência das pessoas na cidade.

Arquitetura hostil no Brasil

A arquitetura hostil em terras brasileiras se espalhou silenciosamente nas últimas décadas. O objetivo, muitas vezes mascarado como uma busca por segurança e ordem pública, é na verdade um ato de exclusão e estigmatização. Onde deveríamos encontrar espaços públicos acolhedores, nos deparamos com dispositivos desumanos.

Temos visto grades em torno de praças e gramados, transformando áreas de encontro em territórios restritos. Bancos públicos desconfortáveis, que deveriam ser lugares de descanso, se tornaram obstáculos àqueles que precisam de um momento de repouso. E os muros gigantescos de condomínios fechados, ao invés de protegerem, criam pontos cegos e geram insegurança para quem caminha nas calçadas.

Não podemos esquecer das pedras em áreas públicas tornaram impossível encontrar um local seguro e macio para descansar, especialmente para nossos irmãos e irmãs em situação de rua. Lanças afiadas em muretas e guarda-corpos negam a dignidade daqueles que buscam um lugar para se apoiar.

O Projeto de Lei 488/2021 e a proibição da arquitetura hostil

No dia 31 de março de 2021, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 488/2021, uma iniciativa corajosa do senador Fabiano Contarato. Esse projeto busca alterar o Estatuto da Cidade para proibir o uso da arquitetura urbana de caráter hostil ao livre trânsito da população de rua em espaços de uso público.

É uma conquista importante, meus queridos, pois mostra que nossos legisladores estão ouvindo nossas vozes e tomando medidas para combater essa prática desumana. O PL está agora em tramitação na Câmara dos Deputados, onde espera-se que seja debatido e aprovado.

É importante lembrar que o desenvolvimento urbano está intrinsecamente ligado à redução da marginalização, e ações que vão contra o combate a essa realidade devem ser repudiadas pelo Estado. A raiz do problema está na pobreza, na marginalização e na falta de moradia digna. Tirar pessoas vulneráveis do alcance da vista não resolve tais problemas. Pelo contrário, aprofunda ainda mais a desigualdade urbana.

A importância do desenvolvimento urbano equitativo

Vivemos em um país rico em cultura, diversidade e recursos naturais. Nossas cidades, com suas ruas movimentadas, praças vibrantes e bairros diversos, têm o potencial de serem verdadeiros oásis de inclusão e oportunidade. No entanto, muitas vezes, esse potencial é obscurecido pela desigualdade e pela segregação.

A arquitetura hostil é apenas uma manifestação visível desse problema mais amplo. Ela reflete a divisão entre aqueles que têm acesso a espaços públicos acolhedores e aqueles que são excluídos e marginalizados. Ela nos lembra que nossas cidades não são igualmente acessíveis para todos, e isso é inaceitável.

A verdadeira riqueza de uma cidade não pode ser medida apenas em termos de prédios altos e infraestrutura moderna. Ela está na qualidade de vida de seus habitantes, na justiça e na equidade com que compartilhamos os espaços urbanos. Uma cidade que valoriza o desenvolvimento equitativo se preocupa com todas as suas pessoas, independentemente de sua condição social, econômica ou étnica.

Quando investimos em desenvolvimento urbano equitativo, estamos investindo em um futuro melhor para todos. Estamos criando cidades onde a inclusão é a norma, onde cada indivíduo tem a oportunidade de prosperar e onde as barreiras que perpetuam a desigualdade são derrubadas. É uma visão ousada, mas é uma visão que acredito que podemos alcançar.

Combatendo a arquitetura hostil

Precisamos pressionar nossos governantes e legisladores a adotarem políticas que promovam o desenvolvimento urbano equitativo. Precisamos exigir que nossas cidades sejam lugares onde todas as pessoas se sintam bem-vindas, seguras e valorizadas.

É uma luta contínua, mas com determinação e solidariedade, tenho certeza de que podemos criar cidades onde a arquitetura hostil seja apenas uma lembrança do passado, e a inclusão seja a pedra angular de nosso futuro.

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