Entendendo a relação entre aporofobia e arquitetura hostil

Nas entranhas das cidades, onde as luzes brilham intensamente e os arranha-céus tocam o céu, uma realidade obscura permanece escondida dos olhos da maioria. É uma realidade de aversão, medo e desprezo pelos mais desfavorecidos, uma realidade onde a arquitetura se torna um instrumento de segregação. Este fenômeno tem um nome: aporofobia, ou também chamada de pobrefobia.
À primeira vista, as paisagens urbanas podem parecer impessoais, mas a verdade é que cada praça, cada banco de parque e cada marquise de viaduto contam uma história oculta. Este é o lugar onde a aporofobia se manifesta de maneira tangível, moldando a arquitetura hostil que busca afastar os “indesejáveis” das vistas da sociedade.
Neste artigo, mergulharemos nas profundezas dessa conexão perturbadora entre aporofobia e arquitetura hostil, onde iniciaremos jornada de reflexão, conscientização e mudança, enquanto desvendamos os segredos da aporofobia e sua expressão mais tangível na arquitetura urbana hostil.
Sumário
Aporofobia e arquitetura hostil: Definição e origens
Há cerca de duas décadas, a filósofa espanhola Adela Cortina cunhou uma palavra que ecoa com significado e urgência: “aporofobia”. Essa palavra é uma junção de “áporos”, que significa “pobres” ou “desamparados”, e “fobia”, que denota “medo, rejeição ou ódio”. Aporofobia, meus amigos, é o ódio aos pobres.
E por que é importante entender essa palavra e o que ela representa?
Porque nos leva a enfrentar uma realidade perturbadora: a arquitetura hostil. Ela é a manifestação visível da aporofobia, projetada nos detalhes mais mundanos do nosso cotidiano urbano.
Cada banco de praça com divisórias que impede alguém de descansar, cada calçada mantida permanentemente molhada para evitar que alguém durma sob a marquise, cada estrutura afiada ou perigosa projetada para espantar os “indesejáveis” revela essa conexão.
A filósofa Adela Cortina, ao criar o termo aporofobia, destaca um ponto crucial: essa aversão não é direcionada apenas aos pobres, mas àqueles que não podem oferecer algo em troca, àqueles que são vistos como incapazes de nos beneficiar.
Quando olhamos para as grades que cercam bancos, as pedras sob viadutos e os obstáculos projetados para “espantar” os moradores de rua, estamos testemunhando as implicações reais da aporofobia e da arquitetura hostil. Essas estruturas não oferecem soluções à pobreza; em vez disso, empurram os problemas para longe dos nossos olhos, perpetuando a marginalização e a injustiça.
Exemplos de arquitetura hostil

Vocês já devem ter se deparado com bancos de praça que possuem divisórias. À primeira vista, podem parecer meros elementos de design, mas o objetivo é evidente: impedir que alguém se deite e descanse. Essas divisórias, essas estruturas hostis, nos falam de uma sociedade que afasta aqueles que não podem retribuir.
Calçadas que permanecem constantemente molhadas sob marquises são outro exemplo. O objetivo? Impedir que alguém encontre refúgio da chuva. Não é de uma chuva que tememos, mas das pessoas que buscam abrigo. Isso nos leva a refletir sobre o quanto a aporofobia molda nossas cidades, tornando-as inóspitas para os mais desfavorecidos.
E o que dizer das pedras pontiagudas sob os viadutos? Elas não estão lá por acaso. Elas têm um propósito claro: evitar que as pessoas em situação de rua descansem nesses locais. E isso, meus amigos, é uma triste realidade. É um reflexo da aporofobia que nos leva a criar obstáculos e perigos para aqueles que mais precisam de nosso apoio.
Como a aporofobia se relaciona com a arquitetura hostil?
A aporofobia não é um mero conceito abstrato, é uma força que permeia as estruturas da nossa sociedade, infiltrando-se nas decisões de planejamento urbano e na arquitetura de nossas cidades. Mas como isso acontece? Como a aporofobia se materializa na arquitetura hostil?
É importante reconhecer que a aporofobia não se limita ao sentimento de rejeição ou aversão às pessoas pobres. Ela se manifesta de maneira muito real na maneira como nossas cidades são moldadas. A arquitetura hostil é uma expressão direta desse sentimento.
Quando bancos de praça são projetados com divisórias que impedem que alguém se deite para descansar, quando calçadas são mantidas constantemente molhadas para afugentar aqueles que buscam abrigo, quando pedras pontiagudas são deliberadamente instaladas sob viadutos para impedir que pessoas em situação de rua descansem, isso não é acidente. Isso é uma manifestação física da aporofobia.
Mas o que torna isso ainda mais doloroso é que a aporofobia também é uma forma de criminalização da pobreza. Ao criar essas estruturas hostis, estamos, de fato, punindo os pobres por sua condição. Estamos tornando ilegal a busca por abrigo, descanso e segurança. Estamos criminalizando a necessidade básica de sobrevivência.
A criminalização da pobreza vai além das leis escritas; ela está entranhada em nossa paisagem urbana. Quando proibimos que pessoas sem-teto descansem em bancos de praça ou sob marquises, estamos negando a elas o direito a um momento de alívio em meio à dureza das ruas.
Compreender essa relação entre aporofobia e arquitetura hostil é essencial para desfazer as amarras que mantêm nossa sociedade refém do preconceito e da discriminação. Não se trata apenas de estruturas de concreto; trata-se de reavaliar nossos valores como sociedade.
Impacto na população em situação de rua

A arquitetura hostil, como mencionamos antes, é uma expressão física da aporofobia.
Imaginem, o que isso significa para alguém que já enfrenta uma dura batalha pela sobrevivência a cada dia.
Muitos de nossos irmãos e irmãs em condições de rua já enfrentam o estigma, a fome e a falta de abrigo. E, para agravar essa luta, nossas cidades lançam mão da arquitetura hostil, tornando cada esquina um campo minado de desconforto e hostilidade.
Essas estruturas não são apenas obstáculos físicos, são lembretes constantes de que a sociedade os rejeita. Elas dizem: “Você não é bem-vindo aqui.” Elas não oferecem soluções, mas apenas empurram o problema para outras áreas. E assim, se tornam reféns de uma cidade que parece mais interessada em escondê-los do que em oferecer uma mão amiga.
Ação do padre Júlio Lancellotti
Há alguns anos, o Pe. Lancellotti iniciou uma campanha para destacar a aporofobia e a arquitetura hostil que encontra raízes em nossa sociedade.
Através das redes sociais e de ações diretas, procurou conscientizar o público sobre a hostilidade que nossa cidade lança sobre aqueles que mais precisam de ajuda. O objetivo era trazer à luz essas práticas discriminatórias e inaceitáveis, esperando inspirar mudanças significativas.
Expressão física da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil

Uma das ações mais visíveis e simbólicas dessa campanha foi a destruição das pedras sob os viadutos em São Paulo. Essas pedras foram colocadas sob os viadutos para impedir que as pessoas em situação de rua encontrassem refúgio e descanso.
E, em um ato de resistência, o Pe. Lancellotti e outros defensores dos direitos humanos decidiram remover essas pedras com as próprias mãos. Essa ação representou uma rejeição inequívoca da aporofobia e uma declaração de que as ruas devem ser acessíveis a todos.
Uma ação contínua
O padre Júlia Lancellotti tem trabalhado incansavelmente para apoiar a população em situação de rua, oferecendo abrigo, alimentos e cuidados médicos sempre que possível. A luta não é apenas contra a arquitetura hostil, mas também por uma mudança na mentalidade de nossa sociedade, para que todos possam viver com dignidade e respeito.
Para superar a aporofobia e a arquitetura hostil, é necessário mais do que ações isoladas. Precisamos de mudanças sistêmicas, de políticas públicas que protejam os mais vulneráveis e de uma transformação em nossa cultura que promova o acolhimento e a compaixão.
Aprovação do projeto de lei “Padre Júlio Lancellotti”
Em 22 de novembro de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 488/2021 que ficou conhecido como “Projeto de Lei Padre Júlio Lancellotti”. Este projeto visa proibir técnicas de construção hostis no espaço público e privado. A aprovação desse projeto é um grande marco na nossa luta para tornar as cidades mais inclusivas e justas.
Esta aprovação do projeto de lei não é apenas uma conquista legislativa, mas também um sinal de que nossa sociedade está começando a reconhecer a necessidade de combater a aporofobia e a arquitetura hostil de forma mais eficaz.
No entanto, embora tenhamos alcançado essa vitória, o ex-presidente Jair Bolsonaro vetou a proposta no início de 2023, sob o argumento de que ela feria “a liberdade de governança da política urbana”. Posteriormente, o Congresso derrubou o veto em sessão conjunta de deputados e senadores. Com a decisão, a lei foi promulgada.
Todos nós que nos preocupamos com a justiça social e os direitos humanos devemos continuar unidos e trabalhar incansavelmente para que o projeto de lei seja finalmente aprovado e implementado.
Soluções mais humanas e eficazes para lidar com a pobreza urbana
Em nossa jornada para combater a aporofobia e a arquitetura hostil, precisamos lembrar que o nosso objetivo não é apenas condenar a discriminação, mas também criar um mundo mais acolhedor, justo e inclusivo.
Proteção social para aqueles que mais precisam
A população em situação de rua não tem acesso a condições básicas, como água potável. Imaginem o que significa viver sem algo tão essencial. Nós devemos, como sociedade, assegurar que todos tenham acesso a recursos básicos que lhes permitam sobreviver com dignidade.
A moradia é um direito humano fundamental
Não estamos defendendo que as pessoas morem nas ruas, mas sim que não fiquemos presos apenas à hostilidade e ao afastamento delas. Precisamos criar condições dignas para que todos tenham um teto sobre suas cabeças, um lugar seguro para chamar de lar.
Oportunidades de trabalho para a população em situação de rua
O trabalho não apenas fornece meios de subsistência, mas também restaura a autoestima e a dignidade. Devemos promover programas de empregabilidade que sejam inclusivos e acolhedores.
A importância dos cuidados
A população em situação de rua frequentemente enfrenta desafios de saúde física e mental. Precisamos de serviços de saúde acessíveis e de qualidade, para que todos tenham acesso a tratamentos e cuidados adequados.
Ao buscar soluções mais humanas e eficazes, estamos traçando um caminho que nos leva da hostilidade à hospitalidade. Esta é a nossa grande missão.
O projeto de lei “Padre Júlio Lancellotti” é um passo importante nessa jornada, mas ele é apenas o começo. Juntos, continuaremos a lutar por um mundo onde todos tenham a oportunidade de viver com dignidade, onde ninguém seja deixado para trás.
A relevância da conscientização e do debate público
A conscientização e o debate público desempenham um papel vital na nossa busca por uma sociedade mais justa e inclusiva. O tema da aporofobia e da arquitetura hostil, trazido à tona por nossa campanha, é um chamado à ação. Devemos reconhecer que o poder da mudança está nas mãos de todos nós.
A campanha para denunciar e destacar a aporofobia, é uma maneira de lançar luz sobre essa questão crítica. A conscientização é o primeiro passo. Quando mais pessoas entenderem o que é a aporofobia e como ela se manifesta na arquitetura hostil, mais força nossa luta ganha.
A sociedade e seu papel
É fundamental que a sociedade se envolva nesse debate. Todos têm um papel a desempenhar na construção de uma sociedade mais inclusiva e digna. Devemos criar espaços para discussões abertas e honestas sobre a pobreza urbana, a situação de rua e as desigualdades.
Esses debates podem levar a ações significativas. Juntos, podemos pressionar por políticas públicas mais justas, mais investimentos em proteção social, programas de moradia e oportunidades de emprego. Podemos incentivar nossos líderes a priorizar o acolhimento em vez da hostilidade, a compreensão em vez do afastamento.
O papel individual
Cada um de nós pode fazer a diferença em nossa própria comunidade. Seja estendendo a mão para ajudar alguém em situação de rua, doando para organizações de caridade, ou simplesmente tratando a todos com compaixão e respeito.
A aporofobia é um desafio complexo, enraizado em preconceitos e discriminação. Mas, juntos, podemos superá-la. Cada ato de conscientização e cada conversa que temos sobre esse tema nos aproximam de uma sociedade onde ninguém seja deixado para trás.
Nossa missão é construir um mundo mais inclusivo e digno para todos, e é uma missão que podemos alcançar. A mudança começa com cada um de nós, e juntos, podemos fazer a diferença.
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