Amor aos ricos, ódio aos pobres: como naturalizamos a injustiça

“Foda é assistir a propaganda e ver. Não dá pra ter aquilo pra você” (Racionais MC’s. Capítulo 4, versículo 3)
“Seu comercial de TV não me engana. Eu não preciso de status nem fama. Seu carro e sua grana já não me seduz.” (Racionais MC’s. Capítulo 4, versículo 3)
Esses são trechos da música “Capítulo 4, versículo 3”, dos Racionais MC’s. Na canção, é possível perceber que o luxo, dinheiro e status não chamam a atenção de quem canta. Mesmo sendo bombardeados todos os dias por um estilo de vida repleto de carros, fama e conforto, eles não são seduzidos. Muito pelo contrário, é possível notar uma certa revolta com aqueles que expõem uma vida, seja nas televisões ou nas redes sociais, inalcançável para a maioria da população.
No entanto, o que se observa na realidade atual é bem diferente do que a música propõe. Nos últimos tempos, tem crescido a idolatria dos chamados “influenciadores digitais”. Acompanhar suas rotinas luxuosas, os presentes que recebem de grandes marcas, as conquistas de carros e casas milionárias se tornou algo prazeroso para diversas pessoas. A partir disso, cria-se um senso de admiração que, muitas vezes, beira o irracional. Passa-se a desejar ser como eles, a torcer por suas vitórias e celebrar essas conquistas como se fossem coletivas. Quando, na verdade, a distância entre a realidade deles e a dos demais é imensa.

Observa-se, assim, um crescente sentimento de “plutofilia”, neologismo de origem grega criado pelo escritor Agustín Squella, no qual plutos é sinônimo de riqueza e fortuna, enquanto philos, de amigos e amantes. Essa palavra é capaz de descrever uma admiração, amor, apreciação e carinho pelas pessoas ricas e poderosas. Por outro lado, ao se deparar com um indivíduo pobre, o sentimento é outro. A aporofobia, que seria a aversão, repúdio e ódio aos pobres, parece vigorar.
O sentimento de amor aos ricos e ódio aos pobres se faz presente no contexto em que vivemos. Acompanham-se os ricos pelo celular, ignoram-se os pobres nas ruas. Doa-se dinheiro para times de futebol milionários, negam-se esmolas no farol. Chora-se pela morte de um artista famoso, nem se percebe a partida de um irmão das ruas.
É construído, pouco a pouco, um imaginário que rejeita violentamente aqueles que não possuem dinheiro e enaltece os que têm. Por que isso acontece? Por que admiramos pessoas que estão em uma situação de luxo e conforto e ignoramos a dor dos vulneráveis? Por que passamos horas nas redes sociais acompanhando a vida de pessoas que não conhecemos e vemos os pobres como meros obstáculos nas ruas?

Fonte: Estratégia Social, 2023
Uma forma de começarmos a refletir e desconstruir essa mentalidade é por meio da análise crítica da empatia. No livro Contra a Empatia, o cientista Paul Bloom argumenta que esse sentimento, longe de ser neutro, é frequentemente manipulado pelo discurso cultural. Tendemos a sentir empatia por aquilo que está mais visível, como em filmes, nas redes sociais ou nos discursos dominantes.
Um exemplo disso é a comoção internacional diante das queimadas ocorridas nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia, no início do ano. Deparamo-nos com uma ampla mobilização, inúmeras doações, orações e apoio global. No entanto, desastres similares em países menos influentes não despertam a mesma resposta. A empatia, nesse sentido, está condicionada ao que é midiatizado e popular.
Mais próximo de nós, a reação pública diante dos relatos de “sofrimento” de influenciadores digitais também revela esse viés. Divórcios, crises pessoais e outras dificuldades geram uma onda de solidariedade, justamente porque essas figuras estão constantemente expostas e humanizadas nas redes. Por outro lado, pessoas em situação de vulnerabilidade, muitas vezes invisibilizadas ou tratadas como incômodas, não despertam a mesma comoção. Eles são aqueles que, no jogo de trocas, não parecem ter nada a oferecer.
É preciso, portanto, questionar o sentimento de empatia: ele está sendo direcionado a quem? Você sente empatia pelos ricos e famosos porque são eles que estão sempre presentes em sua rotina digital? E, por não enxergar os mais vulneráveis, estaria deixando de reconhecer a humanidade deles?

Fonte: Um só planeta, 2023
Outra maneira de entendermos essa dinâmica é reconhecer que a admiração pelos ricos costuma se apoiar na crença da meritocracia: pensa-se que eles conquistaram altos patamares de riqueza apenas pelo próprio esforço e, por isso, seriam dignos de admiração. Em contraste, os mais pobres são frequentemente vistos como indivíduos que dependem de auxílios e assistência, não sendo merecedores de atenção.
Essa lógica, porém, é falaciosa. Grande parte da riqueza ostentada por esse grupo provém de heranças ou da exploração sistemática de outras pessoas. Raros são aqueles que alcançaram seu status unicamente pelo trabalho árduo, o mesmo esforço dedicado por trabalhadores comuns, como você. Tomar os ricos como parâmetro de sucesso não aproxima ninguém de sua realidade; pelo contrário, romantiza uma estrutura social profundamente desigual.
Desprezar os pobres, por sua vez, revela a incapacidade de enxergá-los como iguais. Achar que a pobreza decorre exclusivamente de preguiça ou falta de iniciativa dá crédito a um sistema que explora e viola direitos, ignorando as múltiplas desigualdades e injustiças com que essa parcela da população convive diariamente.
Então, é seguida uma lógica meritocrática? Amam-se os ricos porque acredita que se esforçaram para chegar onde estão, enquanto se pensa que os pobres não fizeram o mesmo?

Fonte: FGV Social, 2020
Seguindo por esse pensamento, uma forma de enxergar esse fenômeno é pensar que a plutofilia emerge como um esforço de nos aproximarmos de um estilo de vida que, em geral, não nos pertence. Já a aporofobia funciona como um mecanismo de defesa: rejeitamos quem nos lembra da escassez que tememos.
Através das redes sociais, somos constantemente expostos a imagens de consumo ostentatório: marcas, viagens, festas. Desejamos essas posses não apenas pelo status, mas também para negar nossa própria realidade. Contudo, admirar os poderosos não transforma nossa vida: aquele padrão de conforto é inalcançável para a maioria. Ao mesmo tempo, desprezar os pobres reforça uma suposta ideia de que somos superiores ou diferentes, uma ilusão que nos impede de reconhecê-los como nossos iguais.
É preciso refletir sobre essas atitudes: por que idealizamos tanto os ricos e, ao mesmo tempo, afastamos quem vive na escassez? Será que esse amor pelos poderosos não é, na verdade, uma forma de aspiração desmedida, assim como o repúdio aos vulneráveis é a expressão de um medo que precisamos enfrentar?
Todas essas perguntas são importantes para pensarmos que maneira você tem enxergado as pessoas com dinheiro e aquelas que não têm. Pensar o porquê do tratamento despendido entre eles é diferente. Um é digno de amor e admiração, o outro, de desprezo e negligência. Essas são apenas algumas possibilidades de interpretação. É necessário que cada um reflita como essa diferença de tratamento tem operado em sua vida e como reflete na maneira com que você enxerga a realidade.
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