14 de julho de 2025 / 9 min

Na cidade mais rica da América Latina há famílias inteiras morando nas ruas.

“A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída para qualquer parte A gente não quer só comida A gente quer bebida, diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida como a vida quer…” - Comida, Titãs.
Karen Garcia
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757F2DCB 3989 4719 AB4D A1820A4FED00 Foto: Educação e território.
Aporofobia Estereótipo Institucional Pobrefobia poder financeiro

A farsa da meritocracia. 

A desigualdade social advinda do método de produção capitalista utiliza de uma grossa máscara para estancar o plano de fundo feio que o mantém de pé, acostumado a se passar por método democrático onde todos possuem a oportunidade de avançar de classe social graças ao seu esforço e trabalho duro. Esta máscara que aparenta ser tão sólida quando notada com mais atenção se expõe de maneira quase transparente, para aqueles que estão dispostos a enxergar o cenário se desfaz em questões de segundos e fica nítido o massacre, abusos e tortura que são feitas diariamente contra a população pobre para que os que estão em cima continuem subindo e os que estão em baixo despenquem cada vez mais. 

Por mais tortuoso que seja o que foi descrito anteriormente, é como nasceu e se perpetua o atual sistema vigente em maior parte dos países do mundo e com o avanço do neoliberalismo foi possível se construir o inimaginável, colocar a população pobre contra ela mesmo. Em tempos de advento tecnológico quase todas as pessoas possuem acesso a um telefone celular com acesso a internet, e é através de um dispositivo que se fazia objetivo de lazer que diversos influencers, couch’s e empresas vendem para quem está do outro lado que para se tornar empresário e mudar de vida do dia para noite só depende exclusivamente de você e de sua força de vontade. É assim que diversos brasileiros se endividam e se culpam por não alcançar o estilo de vida vendido nas redes sociais de forma fácil e tranquila, quando na realidade estes conteúdos são produzidos apenas para enganar quem está desesperado por novas oportunidades e rouba deles o pouco que resta, a sua esperança. 

Mas se para atingir a classe média alta e fazer parte da elite só basta acreditar e fazer por onde, qual é a culpa que carrega crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua? e famílias inteiras na mesma situação? em uma linha de chegada imaginária onde estão esses meninos e meninas que sobrevivem todos os dias nas ruas de uma das maiores e mais ricas capitais do mundo. 

Tem crianças e adolescentes nas ruas

Quando se trata da garantia de direitos das crianças e adolescentes o marco de mais relevância é a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que em conjunto com a Constituição Federal de 1988, elenca e reforça diversos direitos e deveres sociais para que a proteção da criança e do adolescente seja efetiva. Com incisos e artigos que apresentam aspectos como: 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A criação do estatuto foi um de extrema importância para a pauta como tantos outros estatutos que também foram formuladores para a garantia de outros públicos, porém o que se faz muito bonito na teoria acaba desabando quando observado a prática. O primeiro ponto que gostaria de destacar é a indiferença que a sociedade tem por crianças e adolescentes que não fazem parte do seu núcleo familiar, principalmente se esta faz parte de uma família pobre. É incômodo encontrar esta realidade pois ao mesmo tempo que uma criança pedindo dinheiro ou alimento em frente a um mercado de um bairro x causa desconforto ou até mesmo repulsa das pessoas que frequentam o ambiente e não enxergam o que está escancarado em frente de seus rostos, existem fã-clubes e acompanhamentos quase religiosos a filhos de influencers nas redes sociais. É possível notar que esta situação se dá pelo fato que é uma conquista do capitalismo, o pobre prefere defender a criança rica do que a pobre pois através disto tem a falsa sensação que está mais próximo da elite do que da pessoa em situação de rua. 

A presença de crianças e adolescentes em situação de mendicidade e venda de produtos em farois e em frente de estabelecimentos deveria ser uma preocupação de todos, pois através desta atividade ela se encontra exposta a diversos riscos como atropelamento em vias públicas de alto movimento, exposição a violência por parte de diversos grupos da sociedade, evasão escolar entre outros. Este acontecimento descrito anteriormente não é algo que deveria acontecer em destaque após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente pois de acordo com tal:

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho …

 “Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade.” 

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Foto: Educação e território.

País da fome.

Porém a realidade de diversas famílias levam a necessidade de que crianças e adolescentes irem para as ruas buscar uma renda extra seja para auxiliar na renda familiar, para que tenha condições financeiras de comprar algum item de valor para si ou até mesmo para acompanhar outros amigos que realizam a mesma atividade. A morosidade de processos como os de jovem aprendiz e a falta de informação e divulgação também reforça a necessidade da agilidade em processos que podem servir como complemento de renda, pois a fome não espera. A desigualdade social destrói sonhos todos os dias e quem vem de uma realidade onde seria necessário mais apoio do Estado porém este se mostra extremamente demorado e burocrático o que causa consequências profundas, não é de conhecimento o número exato de famílias inteiras em situação de rua em São Paulo porém de acordo com o censo em 2022 haviam 3.759 crianças e adolescentes em situação de rua sendo 16,2% (609) estão em acolhimento (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes – SAICA, Centro de Acolhida Especial – CAE). O trabalho das equipes de acolhimento devem sempre ser com o foco em retornar o jovem para a sua família de origem, preservando sempre o seu laço familiar quando este se mostra um local seguro e seguindo sempre o melhor do interesse da criança para que seja este assegurado a não viver mais nenhuma situação de violência. Ademais é de suma importância que esta família também seja acompanhada por equipe multiprofissional para que possíveis demandas como insegurança de renda e alimentar sejam supridas além de garantias de rendas para garantia de lazer, educação e segurança para que o núcleo familiar seja fortalecido da maneira necessária para que não haja infrações aos direitos humanos e sociais daqueles que ali convivem.

Porém o processo custoso do Estado para que tais necessidade sejam supridas fazem com quem se encontre nestas condições procurarem formas mais rápidas para que tenham acesso ao mínimo, como ONGs e grupos independentes que trabalham com entrega de alimentos, materiais escolares, cursos profissionalizantes, acesso a documentos entre outros. Segundo os mandamentos da meritocracia tão pregada por uma parte da sociedade o que estas famílias e crianças fizeram de tão errado para não merecerem um teto? um prato de comida? os seus direitos humanos garantidos? Isto mostra sem censura o que é o sistema capitalista, se existe merecimento para a riqueza então existe merecimento para a pobreza? 

Pode parecer óbvio para algumas pessoas que famílias inteiras nas ruas não é um problema pessoal e sim coletivo porém para tantas outras barracas e pessoas pedindo ajuda já se tornou parte da paisagem e isto demonstra o resultado de anos e anos dos agentes do capital trabalhando para culpabilizar os pobres pelos seus problemas e te fazer acreditar que se você consegue bancar um aluguel e tem um carro semi-novo você já venceu, quando na verdade um trabalhador nunca fará parte da elite e ela descansa tranquila pois o ódio entre nós mesmos já foi amplamente implementado. Por fim se faz mais do que necessário e urgente que as massas se unam para colocar em cima da mesa o que deve ser alterado para que seus direitos sejam respeitados mostrar quem definitivamente constrói as cidades todos os dias e isso só vai acontecer quando o pessoal da rua estiver sentado ao nosso lado.

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Foto: Observatório do Terceiro Setor.

Fontes utilizadas:

BRITO, Sabrina. Número de pessoas em situação de rua na cidade de SP cresce e chega a 96 mil. G1. São Paulo. 23 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/04/23/numero-de-pessoas-em-situacao-de-rua-na-cidade-de-sp-cresce-e-chega-a-96-mil.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2025.

Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República,. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 10 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

FOME, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações técnicas: Serviços de acolhimento para Crianças e Adolescentes.: capítulo 1. Princípios. Brasília, p. 23-29. jun. 2009. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/cadernos/orientacoes-tecnicas-servicos-de-alcolhimento.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.

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