Neste mês do orgulho LGBT+ precisamos falar das pessoas em situação de rua

Junho, o mês do orgulho LGBT+
O Dia do Orgulho LGBT+, comemorado em 28 de junho, tem suas raízes em um marco histórico da luta por direitos civis e revolta contra violência policial da comunidade LGBTQIA+ ocorrida em 1969, em Nova York (EUA). Esse evento é considerado o início do movimento moderno pelos direitos LGBT+ em todo o mundo. No ano seguinte, em 1970, ocorreram as primeiras marchas do orgulho em cidades como Nova York, Los Angeles e Chicago marcando o aniversário da Revolta de Stonewall. Desde então, o dia 28 de junho se tornou um símbolo global da luta por direitos, dignidade, visibilidade e igualdade para as pessoas LGBT+.
Na cidade de São Paulo ocorre uma das maiores paradas do mundo, localizada todo ano na Av. Paulista, chega em 22 de junho de 2025 a sua décima nona edição com a temática “Envelhecer LGBT: memória, resistência e futuro”. Ainda de acordo com a SPTuris é o evento que mais traz turistas para a capital paulista, reunindo pessoas de outros estados e até países.
Ao mesmo tempo, São Paulo é uma das cidades que mais concentra pessoas em situação de rua do Brasil, em levantamento realizado em dezembro de 2024 estima-se que este número chegue a cerca de 90 mil pessoas, quando um evento deste tamanho vai para as ruas como fica as pessoas que permanencem todos os dias nelas? A população em situação de rua que se identifica como pessoas LGBT+ está sendo ouvida, vista e tendo seu lugar de protagonismo?
O sistema capitalista e o rompimento de vínculos familiares.
O capitalismo, ao priorizar a acumulação de riqueza e a lógica do lucro, tem como sua base a desigualdade social, o que se reflete diretamente no aumento do número de pessoas em situação de rua. Nesse sistema, o acesso à moradia, saúde, educação e emprego está condicionado à capacidade de consumo, excluindo aqueles que enfrentam vulnerabilidades sociais e econômicas. A ausência de políticas públicas eficazes de redistribuição de renda e proteção social agrava ainda mais essa realidade, tornando visível as falhas de um modelo que gera abundância para poucos e miséria para muitos.
A população em situação de rua é descrita pela Política Nacional para a População em Situação de Rua (decreto 7.053 de 23 de dezembro de 2009) como:
Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.
A existência de pessoas em situação de rua é uma das expressões mais cruas do que é sistema capitalista, já que neste o acesso à moradia não se trata de um direito e sim de um privilégio que só pode ser acessado por aqueles que se fazem “merecedores”. A rua, por sua vez, não é um espaço neutro. Ela é o território da sobrevivência forçada, da violência cotidiana e da invisibilidade social. É também, paradoxalmente, um espaço politicamente controlado e criminalizado. Pessoas em situação de rua são frequentemente perseguidas, removidas, reprimidas por políticas públicas que não as enxergam como cidadãos, mas como problemas urbanos a serem eliminados. Isso revela a necropolítica do capital — a gestão de quem pode viver e de quem pode morrer, ou sobreviver de forma indigna.
Em São Paulo o atual prefeito Ricardo Nunes desde seu primeiro mandato está à frente de diversas ações de cunho aporofobicas no ano de 2023 a praça da Sé foi cercada, a mesma medida ocorreu na Cracolândia localizada anteriormente na R. General Couto Magalhães, onde a prefeitura substituiu os tapumes de metal por um muro de concreto com o argumento de auxiliar nos serviços que atendem tal população. Ao mesmo tempo que é realizado este discurso pela gestão Nunes, o vice-prefeito veio a público em maio de 2025 dizer que a gestão pretende reduzir o equipamento de assistência social no centro com a desculpa de que tal ação auxiliaria no fim da Cracolândia. Também em maio houve o “sumiço” da Cracolândia, onde moradores da região acordaram com as ruas vazias, cenário muito diferente do habitual. Mas o desaparecimento das pessoas que utilizavam deste espaço logo foi descoberto, a gestão Nunes mais uma vez aplicando suas ações higienistas fez o deslocamento forçado destas pessoas por diversos dias utilizando de violência, repressão e mais uma vez roubo de itens de uso pessoal. O maior fluxo destas pessoas se encontra atualmente na Praça Marechal Deodoro nas mesmas condições de desassistência como antes e há três dias atrás foi anunciado pela prefeitura que o espaço anteriormente ocupado pela Cracolândia vai ser construído um conjunto habitacional e é claro esse projeto não pretende incluir os usuários.
É importante destacar que o capitalismo, especialmente em sua forma neoliberal, reduz drasticamente o papel do Estado na proteção dos mais vulneráveis. A responsabilidade social é transferida para o indivíduo, enquanto políticas públicas de assistência, saúde mental, habitação e emprego são desmontadas ou privatizadas. Nesse vácuo, cresce a população em situação de rua, abandonada por um sistema que só reconhece valor naquilo que pode ser monetizado.
Entretanto, em meio à desumanização imposta pelo capital, surgem também resistências. Movimentos sociais, redes de solidariedade, ocupações urbanas e formas de autogestão popular tentam romper com essa lógica perversa. São esforços de reconstruir a vida fora dos limites do mercado, afirmando que a dignidade humana não pode ser condicionada à lógica do lucro.
O rompimento dos vínculos familiares citado anteriormente é uma das principais causas e consequências da vivência nas ruas. Muitas pessoas em situação de rua enfrentam conflitos intensos em seus lares, marcados por violência doméstica, abuso, abandono, rejeição ou incompreensão, especialmente em casos envolvendo dependência química, questões de saúde mental ou orientação sexual e identidade de gênero. Esses fatores contribuem para o afastamento da família como uma tentativa de sobrevivência ou liberdade. Por outro lado, a vida nas ruas também fragiliza ainda mais os laços afetivos, uma vez que a exclusão social, o estigma e a instabilidade das condições de vida dificultam a reconstrução de relações de confiança. A ausência de apoio familiar agrava o ciclo de violência, limitando o acesso a redes de suporte que poderiam auxiliar na saída dessa condição. Assim, a quebra desses vínculos não é apenas uma experiência emocional dolorosa, mas também um elemento estrutural que perpetua a permanência nas ruas.
Dupla violência: pessoas em situação de rua que não estão dentro da ordem heteronormativa.
A presença de pessoas LGBTQIA+ em situação de rua é resultado direto da intersecção entre opressões, como o preconceito de gênero, a LGBTfobia e a desigualdade social. No Brasil e em muitos outros países, essa população enfrenta uma série de violências desde a infância, que frequentemente começam no próprio ambiente familiar. Dados de organizações sociais e estudos acadêmicos apontam que uma das principais causas da situação de rua entre jovens LGBTQIA+ é a expulsão ou fuga de casa devido à rejeição por parte da família — motivada pela orientação sexual ou identidade de gênero desses indivíduos. Assim, o lar, que deveria ser um espaço de proteção e acolhimento, torna-se o primeiro cenário de exclusão.
Uma vez nas ruas, essa população está sujeita a uma série de riscos agravados. Pessoas trans e travestis, por exemplo, são especialmente afetadas pela exclusão do mercado formal de trabalho, o que as empurra, em muitos casos, para economias informais ou para a prostituição como única forma de sobrevivência. Nessas condições, enfrentam violência institucional, estigmatização e uma completa ausência de políticas públicas eficazes. O acesso a serviços básicos de saúde, abrigo e assistência social ainda é precário e, muitas vezes, marcado por discriminação por parte dos próprios profissionais, o que reforça a desconfiança das pessoas LGBTQIA+ em relação ao Estado.
Além disso, há um enorme déficit de políticas públicas com recorte de gênero e sexualidade voltadas à população em situação de rua. A maioria dos abrigos, por exemplo, ainda opera com uma lógica binária de gênero, o que impede o acolhimento adequado de pessoas trans ou não binárias, expondo-as a mais riscos ou à completa exclusão desses espaços. Falta também preparo dos profissionais e sensibilidade institucional para lidar com as especificidades dessa população, o que resulta em um ciclo contínuo de exclusão.
A análise desse fenômeno exige, portanto, uma abordagem interseccional, que reconheça que a situação de rua entre pessoas LGBTQIA+ não é fruto de “escolhas individuais” ou meramente da pobreza, mas sim de uma cadeia de violências que se inicia no âmbito familiar, passa pelo preconceito institucional e culmina na marginalização social. Romper esse ciclo exige mais do que assistência emergencial: é preciso transformar estruturas sociais, investir em políticas públicas inclusivas, criar redes de apoio seguras e promover a educação para o respeito à diversidade desde os primeiros anos de vida.
Esse cenário nos leva a refletir sobre o papel da sociedade e do Estado na reprodução ou no combate à marginalização das pessoas LGBTQIA+ em situação de rua. A invisibilidade social dessas existências não pode mais ser tolerada — é urgente construir políticas públicas fundamentadas na dignidade humana, na inclusão e na justiça social.

Foto: Eli Vieira com Midjourney/ Copyright © 2025, Gazeta do Povo.
Leia também

Pobres se expressando? Chama a polícia!
Luiz Ricas Recentemente a prefeitura de Diadema anunciou a compra de drones militares para atacar gás lacrimogêneo especificamente em fluxos (em SP em locais onde não tem bailes, geralmente em que jovens se encontram ao som de carros tocando funk). Ano passado tivemos mais uma lei criminalizando uma manifestação cultural popular por essas bandas, no caso em específico, em Campinas a Câmara local está discutindo uma lei que proíbe funk nas escolas, lei essa que é a enésima tentativa de criminalizar o gênero e mantém uma larga tradição das classes dominantes manter o controle dos corpos, sexualidade e mentes dos povos através do Estado.

As policias, o ódio ao pobre e a ditadura que não passou para muitas pessoas
Paulo Escobar Um jovem de 15 anos é agredido na estação do metrô Belém na zona leste de São Paulo, o crime pedir dinheiro para um lanche para as pessoas que passavam pela estação, os violadores do seu corpo são os policiais do metrô, aqueles que dizem serem seguranças, mas que possuem as mesmas ações e preconceitos […]

Na cidade mais rica da América Latina há famílias inteiras morando nas ruas.
Karen Garcia “A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída para qualquer parte A gente não quer só comida A gente quer bebida, diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida como a vida quer…” - Comida, Titãs.

Cartão Vermelho para os Pobres
Luiz Ricas Era um sábado à tarde do dia 15 de abril de 1989, uma tragédia mundialmente conhecida em que quase 100 pessoas saíram pra ver um jogo de futebol entre Liverpool e Nottingham Forest e nunca voltaram para casa. A tragédia de Hillsborough não foi um caso isolado de um acidente por irresponsabilidade da organização e […]