Pobrefobia enraizada: quando estar vivo incomoda

Ao refletir sobre os preconceitos presentes em nossa sociedade, é possível perceber que muitos acabam se enraizando em diferentes níveis, como nas instituições, no imaginário coletivo, nas normas e nas políticas.
Um exemplo que ganhou destaque nesse debate foi o conceito de ‘Racismo Estrutural’, que explica como o racismo está institucionalizado em nossa sociedade. Ele mostra como esse preconceito, além de se manifestar de forma explícita, também acontece de maneira silenciosa, sustentado por um imaginário social e políticas públicas e econômicas que impedem a população preta de alcançar liberdade, oportunidades iguais e justiça. Essa forma de discriminação acontece de maneira velada, reforçada por regras, normas e esteriótipos que mantêm a segregação e a marginalização.
Quando pensamos na população pobre, essa realidade também pode ser enxergada. A pobrefobia, que se refere ao preconceito, aversão ou rejeição contra pessoas pobres, também opera de maneira silenciosa, por meio de políticas pobrefóbicas e pela privação do bem-estar pleno desse grupo.
Nossa reflexão pode se iniciar com os seguintes questionamentos: por que a pobreza incomoda? Você atravessaria a rua ao se deparar com um morador de rua vindo em sua direção? Por que você não os olha no olho? Não pergunta seu nome?
Essas perguntas nos fazem refletir que a pobrefobia já está enraizada em nosso imaginário. Ao longo do tempo, é construído um repúdio à população pobre por meio da criação de esteriótipos, à associação negativa desses indivíduos ao “bem-estar” coletivo e à ordem social. Essa é apenas uma das formas em que a pobrefobia se institucionaliza e que deve ser desconstruída. É necessário pensar como você tem enxergado a pobreza, de que maneira ela te incomoda e como suas ações são guiadas a partir desse desconforto produzido.

Fonte: Outras Palavras, 2021
Para além da institucionalização no imaginário individual e coletivo, a pobrefobia também se manifesta em outras esferas. Um exemplo claro pode ser observado justamente nas práticas tomadas pelo poder público de São Paulo que, a todo momento, reforçam a marginalização social e restringem o acesso pleno ao espaço público àqueles que não se enquadram nos parâmetros de consumo e produtividade esperados no tempo atual.
Em nome da chamada “Zeladoria Urbana”, que serviria como uma espécie de cuidado com as ruas e os bens públicos da cidade, esconde-se um plano maior de negligência e apagamento da população pobre.
Isso pode ser observado no Decreto Municipal nº 57.581/2017, assinado pelo então prefeito João Dória, o qual descreve que “§ 2º Poderão ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como uso pessoal”. Esse suposto “cuidado” com a área urbana de São Paulo revela não apenas o desrespeito à dignidade humana, mas também uma clara tentativa de afastar a pobreza dos centros mais movimentados, sobretudo das áreas de maior visibilidade e circulação.
Fonte: Gazata Tatuapé, 2015
Em vez de criar caminhos para inclusão, acesso à moradia e proteção de direitos básicos, o que se vê é a consolidação de práticas que empurram essas pessoas para as margens. No lugar de acolhê-las, o poder público frequentemente recorre à remoção forçada, como se o problema pudesse ser apagado ao sumir com quem o representa. Trata-se de uma política que não enfrenta a pobreza, mas sim persegue quem é pobre, afastando-os das regiões valorizadas das cidades, como se sua presença fosse incômoda ou indesejável. Foi permitido desumanizar e tirar daqueles que estão vulneráveis o pouco que os dão estabilidade. Essa é uma evidência clara de apagamento, negligência e explícita forma institucionalizada de marginalizar a população pobre.
O objetivo de afastar e hostilizar esse grupo, negando até mesmo o mínimo, como ocupar um espaço público para a moradia, também pode ser visto na construção da “arquitetura hostil”, que já chegaram a contabilizar, em 2022, mais de 65 pontos. Essas estruturas funcionam como um meio de privar moradores de rua de estarem em bancos, ruas, embaixo de pontes e escadarias, com estruturas pontiagudas e limitadoras.

Fonte: Hora Campinas, 2021
Para quem consegue compreender a desumanização e a gravidade dessas práticas, parece algo impensável criar estruturas que impeçam a população pobre de estar em lugares que já são, por si só, extremamente precários. O que lhes sobra?
Esse parece não ser um raciocínio feito pelo governador Tarcísio de Freitas que, até mesmo na esfera estadual, deixou evidente ações pobrefóbicas no poder público quando lançou um veto ao projeto de lei de autoria do deputado Paulo Fiorilo (PT). O projeto defendia a proibição de intervenções hostis nos espaços livres no Estado, chamada de “Lei Padre Júlio Lancellotti”. Isso, mais uma vez, mostra como a pobrefobia está institucionalizada, enraizada e entranhada nas estruturas públicas de São Paulo. Tem-se como objetivo, a qualquer custo, invisibilizar e afastar os pobres.
Parece que é um alívio não ter que ver a população pobre no caminho do trabalho, quando se passeia com a sua família pelo centro da cidade, quando está entrando na sua Igreja. Dessa forma, não é necessário lembrar que a pobreza existe e que ela se aproxima de você muito mais do que imagina. Não faz com que você tenha que os ajudar para se sentir melhor. Essas políticas servem um propósito, e o seu fim é o combate ao pobre, não a pobreza.
Esses exemplos são apenas alguns dos casos que evidenciam como a aversão aos pobres está posta em diversas camadas do cotidiano daqueles que a vivem, aparecendo tanto no imaginário dos seus iguais quanto do governo e da prefeitura.
Essa visão estigmatiza quem vive em vulnerabilidade, ignorando suas necessidades concretas e fugindo à obrigação do Estado de garantir condições de dignidade, segurança, habitação e estabilidade.
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