Você enxerga a relação entre pobreza e violência de gênero?
A aversão aos pobres como a base das discriminações sociais
A pobreza atua como um intensificador de preconceitos. Carregada de estigmas históricos e sociais, ela potencializa formas de discriminação que atravessam a existência de inúmeros indivíduos.
É nesse contexto que a filósofa espanhola Adela Cortina, responsável por cunhar o termo “aporofobia”, inicia seu livro Aporofobia, aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Em uma de suas passagens mais importantes, a autora observa (Cortina, 2010, p.18):
É impossível não comparar o acolhimento entusiasmado e hospitaleiro com que se recebem os estrangeiros que vêm como turistas com a rejeição sem misericórdia para com a onda de estrangeiros pobres. Fecham-lhes as portas, levantam cercas e muros, impedem seu transpasso pelas fronteiras.
Com isso, Cortina evidencia que a rejeição não está necessariamente ligada à cultura, etnia ou nacionalidade, mas sim à condição econômica do outro. Enquanto turistas e estrangeiros abastados são recebidos com entusiasmo, migrantes pobres são criminalizados, segregados e recusados. A pobreza, portanto, emerge como fator central na produção da exclusão.

Fonte: BBC, 2021
Essa lógica se estende a outras formas de preconceito, como o racismo, o machismo e a LGBTQIA+fobia. Isso não significa que indivíduos pertencentes a esses grupos não enfrentem discriminação, mas sim que o marcador de classe influencia diretamente o modo como essas opressões se manifestam. Em sociedades que valorizam profundamente o capital, o dinheiro funciona como um escudo simbólico, capaz de suavizar, ainda que não eliminar, as barreiras sociais.
Em termos concretos, uma mulher rica, por exemplo, tende a encontrar formas de proteção e acolhimento negadas a quem vive em situação de vulnerabilidade econômica. O mesmo ocorre com indivíduos LGBTQIA+, pessoas negras e outros grupos historicamente marginalizados: quanto menor o acesso aos recursos, maior a exposição à violência, ao descaso e à invisibilidade.
A pobreza não apenas acentua preconceitos já existentes: ela os torna mais cruéis, mais cotidianos e mais difíceis de combater. A aporofobia, nesse sentido, pode ser entendida como um eixo estruturante de outras formas de exclusão social. Em uma sociedade que idolatra o capital, não possuir bens torna-se um pecado social, e os pobres, alvos preferenciais da rejeição coletiva.
A pobreza tem gênero
Em um primeiro momento, é necessário refletir sobre como a pobreza carrega consigo marcadores sociais específicos. Apesar dos avanços nos estudos sobre essa condição, que hoje a compreendem como um fenômeno multidimensional, que ultrapassa os limites da renda e afeta áreas como saúde, educação, moradia e lazer, ainda é pouco difundida a noção de que a pobreza também possui um recorte de gênero.
Na estrutura social atual, o papel da mulher continua rigidamente definido. A elas é atribuída a responsabilidade pelo trabalho doméstico, pelos cuidados com a casa e com pessoas dependentes, configurando uma jornada dupla: uma parte não remunerada e invisibilizada, e a outra, no mercado de trabalho, geralmente menos valorizada e mal remunerada em comparação aos homens. Cabe a elas ir ao mercado, preparar as refeições, cuidar dos filhos e organizar a vida familiar, tarefas indispensáveis à reprodução da vida, mas sistematicamente desconsideradas como trabalho produtivo.
Essa divisão sexual do trabalho expõe como o machismo está enraizado nos nossos costumes e como afeta o desenvolvimento pessoal de inúmeras mulheres.

Fonte: Gênero e Número, 2019
Essa sobrecarga contribui para que as mulheres enfrentem a pobreza de maneira mais intensa. Como afirmou o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1995: “A pobreza tem rosto de mulher”. Na época, o documento já indicava que, de cada dez pessoas em situação de pobreza, sete eram mulheres.
Esses dados revelam que as mulheres encontram maiores obstáculos para romper com os ciclos de pobreza. Além de enfrentarem discriminação e preconceitos no mercado de trabalho, lidam com pressões sociais que as mantêm ligadas ao espaço privado e à função do cuidado, o que limita sua autonomia, reduz seu tempo disponível e restringe suas oportunidades de inserção econômica e social.
A pobreza não é uma condição neutra: ela é atravessada por marcadores de gênero que se manifestam na divisão desigual do trabalho, na exclusão de espaços de decisão e na negligência do Estado frente às necessidades das mulheres. Ao permanecerem em posições de subordinação, as mulheres enfrentam dificuldades estruturais que reproduzem e aprofundam sua vulnerabilidade econômica e social.
A sobreposição do machismo e da aporofobia
Diante das reflexões apresentadas até aqui, torna-se claro que a pobreza está profundamente entrelaçada à experiência de ser mulher. No entanto, é fundamental reconhecer que essa realidade não atinge todas as mulheres de forma homogênea. Encontra-se, também, um recorte de raça, no qual mulheres negras enfrentam de forma mais explícita essa realidade.
A feminilização da pobreza não é para as mulheres em geral, mas para as mulheres em situações específicas de vulnerabilidade adicional, isto é, situações que adicionam vulnerabilidade ao que a discriminação já implica como mulher, tornando-a mais visível em alguns casos do que em outros.” (Tortosa, 2006, p.28)
Esse trecho evidencia a existência de camadas de opressão que se sobrepõem. A mulher pobre enfrenta uma discriminação de ordem dupla: por ser mulher e por estar em situação de pobreza. O machismo, a misoginia e a subalternização que atravessam a experiência feminina ganham contornos ainda mais brutais quando analisados sob o marcador da classe social.
Enquanto mulheres de camadas mais privilegiadas podem, muitas vezes, delegar tarefas cotidianas, as mulheres pobres não possuem essa alternativa. Não podem pagar por creches privadas quando não há vagas nas públicas, não podem contratar alguém para limpar suas casas, cuidar dos filhos ou fazer compras. A elas é atribuído, de forma total e sem descanso, o trabalho da reprodução da vida. E este trabalho, essencial para a manutenção do tecido social, continua não sendo valorizado nem remunerado.

Fonte: Observatório do Terceiro Setor, 2019
Essa sobrecarga tem efeitos diretos e profundos sobre suas vidas. As mulheres pobres enfrentam maiores dificuldades para concluir sua formação escolar, buscar qualificação profissional, acessar empregos formais ou cargos de maior remuneração, pois lhes falta o recurso mais precioso que o dinheiro proporciona: o tempo. O tempo que poderia ser investido em si mesmas, em lazer, em estudo ou em saúde, é totalmente consumido por tarefas domésticas e de cuidado que, embora fundamentais, são impostas ao seu cotidiano e seguem invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade.
Angela Davis, ao analisar a realidade das mulheres negras e pobres nos Estados Unidos em Mulheres, Raça e Classe (1981), reforça que o trabalho doméstico, historicamente imposto às mulheres negras e empobrecidas, foi tratado como algo natural, como se “cuidar” fosse uma vocação inata e não uma construção social que sustenta desigualdades profundas. Essa naturalização serve para legitimar a sobrecarga e excluir essas mulheres de outros espaços sociais.
Elas são, para além, constantemente subestimadas e desacreditadas. Sofrem um estigma adicional que associa pobreza à incapacidade, como se sua condição socioeconômica fosse resultado de uma falha individual. Muitas vezes, são justamente essas mulheres que, apesar de tantas limitações, são contratadas por famílias de classe média e alta para cuidar dos filhos dos outros, cozinhar, limpar, zelar por um lar que não é o seu, enquanto o seu próprio cuidado pessoal, familiar e emocional é deixado de lado por absoluta falta de condições.

Fonte: MTST Brasil. Artista: Paulo Kalvo
Uma pesquisa realizada em 2018, com 97 mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família, reforça esse cenário. Os relatos coletados revelaram uma associação clara entre o trabalho de cuidado e sentimentos de exaustão, injustiça e sobrecarga. Muitas entrevistadas relataram sintomas de ansiedade e depressão, associando sua saúde mental à ausência de tempo para si mesmas e à constante sensação de não conseguirem cumprir adequadamente os múltiplos papéis que lhes são impostos. Algumas expressaram o sentimento de não se considerarem boas mães ou provedoras, não por falta de empenho, mas por não conseguirem corresponder às exigências sociais diante das condições em que vivem.
Esse cenário escancara como a pobreza funciona como um intensificador brutal dos estigmas associados ao machismo estrutural. Mulheres pobres não apenas convivem com a desigualdade de gênero; elas são esmagadas por ela. Seus corpos, sua força de trabalho, seu tempo e sua saúde são explorados em todas as esferas da vida social, muitas vezes sem qualquer reconhecimento ou retorno digno.
Não é exagero afirmar que, em nossa sociedade, ser mulher já implica em enfrentar obstáculos. Ser mulher e pobre, no entanto, é viver constantemente à margem, com menos direitos, menos tempo, menos oportunidades e mais dores. A pobreza, portanto, não apenas atravessa a condição feminina: ela aprofunda, radicaliza e multiplica suas violências.
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